sexta-feira, 28 de agosto de 2009

ENTRELUGAR


ENTRELUGAR



Estende em gorjeios
as mãos frente aos ramos febris
Os pêssegos, outrora em flores,
caem ao chão em gesto servil
com a única preocupação
de oferecer-lhe o néctar
Vê-la assim indolente
com os lábios úmidos
e despertos
com o vento sibilante
roçando-lhe a pele
fastidiosamente
provoca-me qualquer estranhamento
Desejaria encontrar-me
tão plena e certa
Mas a mim
que sempre fui tão subserviente
quanto qualquer fruta
não foi dado o direito
de pertencer a espaço nenhum
Prenderam-me neste entrelugar
de onde nenhuma graça
pode me salvar
De onde eu, em desespero,
observo incrédula
a existência alheia
mirífica
miraculosa
enquanto minha vida
se esvai.

poema de Jaqueline Nascimento
ilustração: The Sorceress, John William Waterhouse (1913)

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

ISTO NÃO DEVERIA SER A ÁFRICA




Outro dia, lendo o caderno eletrônico de José Saramago, me deparei com um texto de uma relevante crítica sobre a África, um texto que me causou profunda impressão e que me fez refletir acerca deste sofrimento, comparando-o com a realidade social aqui no Brasil.


Gostaria de compartilhá-lo com os leitores deste blog e levá-los também a pensar a respeito.


Apreciem:


África


By José Saramago


Em África, disse alguém, os mortos são negros e as armas são brancas. Seria difícil encontrar uma síntese mais perfeita da sucessão de desastres que foi e continua a ser, desde há séculos, a existência no continente africano. O lugar do mundo onde se crê que a humanidade nasceu não era certamente o paraíso terrestre quando os primeiros “descobridores” europeus ali desembarcaram (ao contrário do que diz o mito bíblico. Adão não foi expulso do éden, simplesmente nunca nele entrou), mas, com a chegada do homem branco abriram-se de par em par, para os negros, as portas do inferno. Essas portas continuam implacavelmente abertas, gerações e gerações de africanos têm sido lançados à fogueira perante a mal disfarçada indiferença ou a impudente cumplicidade da opinião pública mundial. Um milhão de negros mortos pela guerra, pela fome ou por doenças que poderiam ter sido curadas, pesará sempre na balança de qualquer país dominador e ocupará menos espaço nos noticiários que as quinze vítimas de um serial killer. Sabemos que o horror, em todas as suas manifestações, as mais cruéis, as mais atrozes e infames, varre e assombra todos os dias, como uma maldição, o nosso desgraçado planeta, mas África parece ter-se tornado no seu espaço preferido, no seu laboratório experimental, o lugar onde o horror mais à vontade se sente para cometer ofensas que julgaríamos inconcebíveis, como se as populações africanas tivessem sido assinaladas ao nascer com um destino de cobaias, sobre as quais, por definição, todas as violências seriam permitidas, todas as torturas justificadas, todos os crimes absolvidos. Contra o que ingenuamente muitos se obstinam em crer não haverá um tribunal de Deus ou da História para julgar as atrocidades cometidas por homens sobre outros homens. O futuro, sempre tão disponível para decretar essa modalidade de amnistia geral que é o esquecimento disfarçado de perdão, também é hábil em homologar, tácita ou explicitamente, quando tal convenha aos novos arranjos económicos, militares ou políticos, a impunidade por toda a vida aos autores directos e indirectos das mais monstruosas acções contra a carne e o espírito. É um erro entregar ao futuro o encargo de julgar os responsáveis pelo sofrimento das vítimas de agora, porque esse futuro não deixará de fazer também as suas vítimas e igualmente não resistirá à tentação de pospor para um outro futuro ainda mais longínquo o mirífico momento da justiça universal em que muitos de nós fingimos acreditar como a maneira mais fácil, e também a mais hipócrita, de eludir responsabilidades que só a nós nos cabem, a este presente que somos. Pode-se compreender que alguém se desculpe alegando: “Não sabia”, mas é inaceitável que digamos: “Prefiro não saber”. O funcionamento do mundo deixou de ser o completo mistério que foi, as alavancas do mal encontram-se à vista de todos, para as mãos que as manejam já não há luvas bastantes que lhes escondam as manchas de sangue. Deveria portanto ser fácil a qualquer um escolher entre o lado da verdade e o lado da mentira, entre o respeito humano e o desprezo pelo outro, entre os que são pela vida e os que estão contra ela. Infelizmente as coisas nem sempre se passam assim. O egoísmo pessoal, o comodismo, a falta de generosidade, as pequenas cobardias do quotidiano, tudo isto contribui para essa perniciosa forma de cegueira mental que consiste em estar no mundo e não ver o mundo, ou só ver dele o que, em cada momento, for susceptível de servir os nossos interesses. Em tais casos não podemos desejar senão que a consciência nos venha sacudir urgentemente por um braço e nos pergunte à queima-roupa: “Aonde vais? Que fazes? Quem julgas tu que és?”. Uma insurreição das consciências livres é o que necessitaríamos. Será ainda possível?

José Saramago



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This entry was posted on Agosto 11, 2009 at 12:01 am and is filed under O Caderno de Saramago
África. SARAMAGO, José. Disponível em http://caderno.josesaramago.org/2009/08/11/africa/ Aceso em 08/08/09.

terça-feira, 11 de agosto de 2009

MENINA MORTA


Agnieszka Motyka - Ofélia
(encontrado em microargumentos.blogspot.com)


MENINA MORTA

De um passado longínquo
restam, ainda, alguns ruídos
as paredes de cor ocre
do quarto imaculado
cobertas de um suspeito negror
irremediável
Lá fora, a bruma da madrugada
ainda sussurra
cantigas enfadonhas
e cheias de dor e mágoa
E eu, só e sentada
a fronte submersa
no espelho das verdades
E, assim, tentando dar cor ao rosto
de um semblante circunspecto
sinto emergir o som
das rendas diáfanas
Abrem-se as janelas da adoração
E ela invade o ambiente
ponteando o rebanho
de doidas mulherzinhas
ávidas por meus cabelos.
Surge como flor efêmera
trazendo o sol em seus olhos
raiado
Mas como posso com esse corpo iluminado?
A minha alma é um naufrágio só
Mas nesta manhã em que rompe
claridade inefável
quando de sua inopinada chegada
resta-me fitá-la temerosa
e trêmula.
Sozinhas, então, seguimos por claustros
de onde pétalas flutuam em dança
- Por favor – imploro
- sou apenas uma criança!
Não mais ressoam os ecos
e ela, sabendo de minha náusea
Provoca-me com seu sorriso desértico.
Conheço, definitivamente,
a cor do silêncio
Acolhida sou por um rosto
desfigurado
E seu corpo, feito de éter
move-se para mim
como que em prece
Não me deixará sofrer, promete
e agarrará desesperadamente
meu retrato
a cada saudade
de forma quase selvagem
E sinto em seu movimento sinistro
fortuita vontade de desfazer-se
de seus planos
de abraçar-me para sempre
até o túmulo
Ah, mas o despertar maligno
aponta novamente para a resolução
E já me vejo embarcando
nos navios
do desconhecido
em viagem pelos mares
e seus redemoinhos
rumo à torturante exatidão
Ainda agora quando me acordo
lembro do cheiro da despedida
prendo-me às rendas
sentindo um resto de vida
lembro que fui a menina
que um dia sonhando
irrompeu por todas as portas
as suas lágrimas desditas
mas que neste presente não sonha mais
esta menina já não chora,
esta menina está morta.




poema de Jaqueline Nascimento

sábado, 8 de agosto de 2009

POEMA DO MENINO JESUS

Nada de palavras aqui ... ecoam apenas os silvos de um brívido provocado quando no encontro com esta incrível obra: Poema do Menino Jesus, segundo Alberto Caeiro, uma das muitas faces de Fernando Pessoa. O poema está, obviamente, resumido, e é declamado por Maria Bethania.




domingo, 2 de agosto de 2009

MANIFESTO À MINHA IGNORÂNCIA ... ALGUÉM SE ARRISCA?

Hoje acordei com desespero profundo, esqueci completamente de como se escreve. Procurei as canetas e papéis, rabisquei aqueles vocábulos costumeiros e nada ... nada além de um lugar comum perturbador. Tentei agarrar-me a uma saudade qualquer, um sentimento que me pusesse de pé o coração acossado, mas todas as cores de outrora saíram bruxuleantes a procura do cárcere do sossego.
Hoje não pintei meu rosto, como sentir saudade do que jamais me pertenceu, ou melhor, do que jamais fui? Ora, ceguei-me a ponto da entrega ... entrega à ilusão de minhas construções. Montei cada peça de minha essência acreditando na superior humanidade das minhas entranhas. A verdade? Preferia não ser humana, preferia não acordar do sonho que me levava para o casulo, preferia rastejar pelas protuberâncias arbóreas, pelas saliências do bosque secreto. Eu queria ser assim, completamente oculta, destinada aos cantos místicos pelos quais se chega à pretensa evolução da alma.
Não sou dada a manifestos, verdade seja dita, mas hoje que perdi o tino para o que realmente era importante, hoje que meus dedos escrevem apenas frivolidades sobre as quais tanto pisei, hoje manifesto a minha total ignorância do mundo, a minha total banalização, a minha total repugnância ao que já foi meu espírito.
Quem pudesse ver meu semblante cordato diria que não meço as palavras, diria que me enojo por tão pouco, diria que estou cega. Mas a verdade? Sempre a verdade? É neste momento de total desconhecimento do que fui, que meus olhos se abrem para a claridade de meu esquecimento. Eu não sei escrever e é assim porque não sei ler o mundo, não sei ver as pessoas e seus anseios, não sei pedir sem que me abale o orgulho. Eu sei chorar com o sofrimento alheio, mas em minutos minhas lágrimas transformam meu rosto em novo deserto fazendo desaparecer qualquer afetação, e volto aos meus dias serenos de cegueira e embriaguez, e voltam minhas ilusões com suas ilhas para onde navio nenhum pode me levar.
Não consigo entender que toda minha vida é um naufrágio? E a profundidade é inevitavelmente maior a cada linha. O afogamento e a total desolação não tardam a chegar, e os suspiros inaudíveis, e as tristezas vãs, e os sorrisos que, para me fazer merecedora, se esboçam em meu rosto frio, lá se vão com toda minha construção, lá se vão com a mentira que me tornei.
Eu desejei ser um animal completamente ignorante do mundo, desejei sujar meus dedos cavando tocas onde pudesse me esconder, um ninho quente onde só as batidas do meu coração fossem suficientes para me lembrar de que ainda existe vida. Não precisaria mais voltar à superfície, comeria formigas e estes tantos insetos que só descobri existir nos estudos exaustivos de biologia. Para que ver a claridade novamente se não posso enxergá-la?
Ora, mas veja como realmente parei de escrever, veja só como repentinamente perdi meu compêndio de palavras ilustres e poéticas, veja como perdi a noção de coerência. Eu estava a me afogar e agora já quero cavar buracos. Estava sendo engolida pelo oceano revolto e pleno de mistérios para enfiar-me na terra a comer defuntos. Marinha ou telúrica? Uma escolha difícil.
Mas agora que não sei mais escrever, posso ao menos afirmar na minha ignorância, nos meus modos ridículos, que não quero mais ser indiferente, seja lá ao que for. Quero abrir os meus olhos àquela doce fresta diáfana que, na sua incrédula suavidade, toma a minha mente lembrando-me de que ainda é possível ser alguém, seja eu a escritora ou o animal, não sentirei mais saudade das cidades inexistentes, agora me deixarei habitar.
Manifestei aqui a ignorância que constantemente me assombra, a forma como os medos muitas vezes bloqueiam a atividade criativa. Alguém deseja se manifestar? Mande-me um email e poderei publicar seu texto aqui.