Hoje acordei com desespero profundo, esqueci completamente de como se escreve. Procurei as canetas e papéis, rabisquei aqueles vocábulos costumeiros e nada ... nada além de um lugar comum perturbador. Tentei agarrar-me a uma saudade qualquer, um sentimento que me pusesse de pé o coração acossado, mas todas as cores de outrora saíram bruxuleantes a procura do cárcere do sossego.
Hoje não pintei meu rosto, como sentir saudade do que jamais me pertenceu, ou melhor, do que jamais fui? Ora, ceguei-me a ponto da entrega ... entrega à ilusão de minhas construções. Montei cada peça de minha essência acreditando na superior humanidade das minhas entranhas. A verdade? Preferia não ser humana, preferia não acordar do sonho que me levava para o casulo, preferia rastejar pelas protuberâncias arbóreas, pelas saliências do bosque secreto. Eu queria ser assim, completamente oculta, destinada aos cantos místicos pelos quais se chega à pretensa evolução da alma.
Não sou dada a manifestos, verdade seja dita, mas hoje que perdi o tino para o que realmente era importante, hoje que meus dedos escrevem apenas frivolidades sobre as quais tanto pisei, hoje manifesto a minha total ignorância do mundo, a minha total banalização, a minha total repugnância ao que já foi meu espírito.
Quem pudesse ver meu semblante cordato diria que não meço as palavras, diria que me enojo por tão pouco, diria que estou cega. Mas a verdade? Sempre a verdade? É neste momento de total desconhecimento do que fui, que meus olhos se abrem para a claridade de meu esquecimento. Eu não sei escrever e é assim porque não sei ler o mundo, não sei ver as pessoas e seus anseios, não sei pedir sem que me abale o orgulho. Eu sei chorar com o sofrimento alheio, mas em minutos minhas lágrimas transformam meu rosto em novo deserto fazendo desaparecer qualquer afetação, e volto aos meus dias serenos de cegueira e embriaguez, e voltam minhas ilusões com suas ilhas para onde navio nenhum pode me levar.
Não consigo entender que toda minha vida é um naufrágio? E a profundidade é inevitavelmente maior a cada linha. O afogamento e a total desolação não tardam a chegar, e os suspiros inaudíveis, e as tristezas vãs, e os sorrisos que, para me fazer merecedora, se esboçam em meu rosto frio, lá se vão com toda minha construção, lá se vão com a mentira que me tornei.
Eu desejei ser um animal completamente ignorante do mundo, desejei sujar meus dedos cavando tocas onde pudesse me esconder, um ninho quente onde só as batidas do meu coração fossem suficientes para me lembrar de que ainda existe vida. Não precisaria mais voltar à superfície, comeria formigas e estes tantos insetos que só descobri existir nos estudos exaustivos de biologia. Para que ver a claridade novamente se não posso enxergá-la?
Ora, mas veja como realmente parei de escrever, veja só como repentinamente perdi meu compêndio de palavras ilustres e poéticas, veja como perdi a noção de coerência. Eu estava a me afogar e agora já quero cavar buracos. Estava sendo engolida pelo oceano revolto e pleno de mistérios para enfiar-me na terra a comer defuntos. Marinha ou telúrica? Uma escolha difícil.
Mas agora que não sei mais escrever, posso ao menos afirmar na minha ignorância, nos meus modos ridículos, que não quero mais ser indiferente, seja lá ao que for. Quero abrir os meus olhos àquela doce fresta diáfana que, na sua incrédula suavidade, toma a minha mente lembrando-me de que ainda é possível ser alguém, seja eu a escritora ou o animal, não sentirei mais saudade das cidades inexistentes, agora me deixarei habitar.
Manifestei aqui a ignorância que constantemente me assombra, a forma como os medos muitas vezes bloqueiam a atividade criativa. Alguém deseja se manifestar? Mande-me um email e poderei publicar seu texto aqui.
por favor, não pare de escrever, pode naufragar em quantos mares queira mas não esqueça de voltar e escrever como foi, o que viu e sentiu, como eram os monstros das profundesas de teu ser. se quizer pode se enterrar e viver de formigas, mas deixe-nos seu endereço - de preferência debaixo desta ponte desta foto de abertura - que te iremos visitar, não, não precisa nos receber apenas queremos esta ali, à espera.
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